terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A contribuição da mulher na atenuação da fome na seca


O problema da seca não se manifesta no aspecto específico da água, mas especialmente na escassez de alimento, caracterizada como fome endêmica, relacionada à casa e à mulher, que não é pensada pelos idealizadores da política da emergência da seca.

A palavra fome, de acordo com Sobrinho (1982), comporta vários significados. Diz respeito ao indivíduo e à humanidade, e é problema crucial. No passado, o termo se referia à falta de alimento para saciar o apetite, que, no ser humano, é considerado estágio fisiológico ligado à necessidade alimentar. No sentido moderno, fome é a falta de quaisquer dos quarenta ou mais elementos nutritivos indispensáveis à manutenção da saúde. Essa carência ocasiona morte prematura, embora não acarrete, necessariamente, a inanição por falta absoluta de alimento.

Em qualquer dos significados acima levantados, a fome é uma constante nas famílias dos pequenos agricultores do Semi-Árido nordestino, independentemente da seca. Seria uma visão simplista atribuir a fome da família rural dessa região do Nordeste unicamente à irregularidade pluviométrica que periodicamente desorganiza a produção. De acordo com Castro (1980), a seca apenas agrava a situação da fome, que tem causas mais ligadas às desigualdades sociais do que aos fenômenos climáticos.

Assim, observa-se que a fome no Semi-Árido nordestino constitui uma extensão da pobreza, que as famílias dos pequenos produtores rurais caracterizam como necessidades. Estas, em período de chuvas normais, se referem à comida de má qualidade, falta de roupas e calçados, carência de assistência médica, falta de terra para trabalhar, moradia e outros elementos do bem-estar que, como enfatiza Bobbio (1992), são direitos do cidadão, considerados indispensáveis à sua sobrevivência.

De acordo com Fischer (1998), no período de escassez de chuvas, as chamadas necessidades aumentam e comprometem a própria sobrevivência da família sertaneja nordestina, especialmente no que se refere ao suprimento alimentar. Ao atingir tal estágio, a necessidade adquire a conotação de fome, que, amenizada pela rede de solidariedade entre os iguais, é novamente considerada pela família do produtor rural do Sertão nordestino como necessidade básica. Esse processo de solidariedade ocorre através da distribuição do pouco alimento que existe na comunidade ou rede de parentesco, e aquele que dispõe de algum quantum de alimento, socorre quem nada tem para cozinhar. Assim, é através desse arranjo que a solidariedade caricatura a fome, dando-lhe novamente a conotação de necessidade, a qual, em sentido simbólico, pode significar muitas coisas juntas. Dessa forma, a fome somente se caracterizaria como tal no caso de morte por inanição, isto é, quando atinge o indivíduo na sua totalidade e alcança o patamar classificado por Josué de Castro (1980) de epidemia de fome coletiva, que afeta indistintamente a todos.

Na família estudada do Semi-Árido, segundo Fischer (1998), as necessidades não passam pelo crivo do planejamento, mas, sem dúvida, obedecem a uma administração rigorosa. Nessa administração, homens e mulheres têm papéis diferenciados, pois cabe ao elemento feminino enfrentar a difícil tarefa de gerenciar o alimento consumido no cotidiano, enquanto o homem tem a pesada função econômico-social de produzir e distribuir os gêneros alimentícios.

Na administração cotidiana do alimento, principalmente durante a seca, a mulher rural em estudo, além de calcular a quantidade de gêneros alimentícios que deve ser consumida diariamente na unidade familiar, muitas vezes, delimita também o alimento de cada membro durante a refeição. Geralmente, cabe a ela distribuir "pratos feitos" entre os familiares, para que todos sejam contemplados eqüitativamente. Nessa distribuição, os indivíduos, principalmente a dona-de-casa, não ingerem a quantidade que seu apetite permite, mas, diante da limitação do alimento, o que é possível. Vale, ainda, salientar que no processo de distribuição da refeição, são estabelecidas prioridades que contemplam as crianças e o marido. Caso os pequenos não fiquem relativamente satisfeitos, alguém, que geralmente é a mulher, doa a refeição que lhe cabe. O marido é, sobretudo, contemplado nessa distribuição. O fato de ter pouco alimento para servir na hora da refeição, principalmente para as crianças e o marido, é, na opinião da mulher pesquisada, a prova mais dura que enfrenta na seca. "Esta é uma provação que tira o sono, o sossego, o ânimo e até a vontade de viver", avalia uma entrevistada do município de Patos. Os depoimentos seguintes enfocam a angústia da mulher ao dividir o alimento na unidade familiar:

Fico desesperada quando a comida não dá. Quem está na cozinha é quem sente a dor de cabeça, vendo o povo pra comer e a comida sem dar pra todo mundo. É difícil fazer uma sopa com a metade de um pacote de macarrão para dividir com 8 pessoas. Eu afino a sopa. Afino... mas não tem jeito. Os filhos e de 13 e 15 anos, são comedores, não se conformam com pouco. Aí dá dor de cabeça. A parte da mulher esquenta muito. Se não usar bem com o juízo, se atrapalha. Brigo, reclamo o tempo todo. Reclamo para o marido e para os filhos porque não vou morrer calada. O marido pergunta: nós vamos fazer o quê? Aí, ele sai pra comprar fiado. Quando ele consegue fico satisfeita. Só quem sabe o que tá precisando, se a comida vai dar, o que vai faltar, é a mulher. Tem hora que olho pro velho, que tem mais idade do que eu, e digo: tu tá mais novo do que eu. Ele sorri e diz: é, você se aperreia muito (entrevistada do município de Patos).

É difícil repartir a comida. É preciso saber pra ninguém ficar sem nada. A criança não quer saber de onde sai. Quer comer 3 vezes por dia. Pobre come só o que tem. Se tem pouco, todos têm que comer pouco, se conformar com o que tem. Mesa de pobre é desigual: tem dia que faz de conta que tem; outra vez nem isso pode fazer, passa pela mesa (entrevistado residente no município de Ouricuri).

O homem rural do Semi-Árido pesquisado dificilmente passa por dificuldades semelhantes às da mulher chefe de família, pois raramente assume o núcleo familiar sozinho. Seu constrangimento resume-se ao não cumprimento de suas obrigações de provedor do lar, tarefa que culturalmente lhe é atribuída e cobrada pela sociedade e, sobretudo, por ele próprio.

O homem apresenta comportamento peculiar no enfrentamento da falta de comida, principalmente no período da seca. Enquanto a mulher procura dar vazão a seus impulsos, dividindo seu desespero com todos na família - chora e insulta o marido e encara o problema com determinação, segurança, esperança, e consegue inclusive levantar o ânimo dos familiares -, o homem tende a assumir calado sua fraqueza e, no geral, fica deprimido e frágil. Esse grau de depressão aumenta na medida em que a mulher, diante da falta de comida para servir aos filhos, cobra-lhe a obrigação de dono de casa e, portanto, de mantenedor da família, exigência que ele tende a ler como negação da sua condição de homem. Diante de tal cobrança, o homem, de um modo geral, demonstra sentimento de impotência e apenas tenta se justificar dizendo que "não tenho de onde tirar"... "não encontro pra quem trabalhar"... e devolve o problema para a mulher, dando-lhe mais uma tarefa: a de pensar sobre o que ele deve fazer. Este é um tipo de situação que deixa o homem um tanto desmoralizado diante da família e com a auto- estima em baixa.

A escassez de alimentos, sobretudo durante a seca, causa mal estar psicológico e social no homem e na mulher e, sem dúvida, transtornos orgânicos na família rural, que tem sua alimentação totalmente desequilibrada. A dona-de-casa rural da seca dificilmente sabe distinguir proteínas de vitaminas e tampouco entende o que significam sais minerais, porém, sabe dosar, no preparo do alimento, quantidade e qualidade na junção dos nutrientes, de forma que se existir produção de feijão, milho, arroz, ovos, leite, carne (mesmo que eventualmente) e algumas verduras, a família terá a alimentação relativamente equilibrada devido à vivência da mulher rural pesquisada, tanto com a combinação de alimentos quanto com a escassez e limitação na diversificação de produtos alimentares. E embora aquela alimentação balanceada com proteínas e vitaminas que, segundo Castro (1980), constituía o grosso do consumo da família sertaneja, como queijo, manteiga, carne de boi, carneiro, cabrito, que fazia do sertanejo "um forte", na expressão de Euclides da Cunha, já não exista, da época restaram o hábito alimentar e a cultura de preparar o alimento, assimilada pela mulher.

Assim, mesmo desconhecendo o conteúdo de proteínas, vitaminas e sais minerais dos produtos alimentares, a mulher utiliza seu aprendizado sobre o seu preparo, repassado através de gerações, para improvisar arranjos nutricionais durante a seca, embora tenha a consciência de que a refeição não está balanceada em vista da reduzida diversificação e da quantidade dos itens disponíveis. O seguinte depoimento, que simboliza o sentimento de praticamente todas as entrevistadas, versa sobre os arranjos alimentares improvisados pela mulher em época de estiagem:

pobre O alimento é fraco na seca, mas pobre come tudo. Quando a gente pega em dinheiro, nós faz a feira. Feira assim... porque gente fraco não faz feira. Compra 10 quilos de açúcar e 10 quilos de feijão pra 15 dias. Compro o carioquinha, que rende mais. Cozinho o feijão de manhã, e 11 horas a gente come os caroços do feijão com "cusculho". Deixo o caldo do feijão pra noite. Aí, eu tempero aquele caldo com uma cebola e alho e coloco um pouco de "cusculho", e assim a gente vive. De manhã, é só café com açúcar, quando tem, porque café tá muito caro. Hoje não tinha café em casa. Alguém deu café e açúcar a ele lá pela rua [o marido, que estava junto, envergonhado repreende: eu comprei fiado]. Mesa de é desigual (entrevistada residente no município de Patos).

Esses arranjos alimentares são, por vezes, improvisados com os gêneros da cesta básica doada pelo governo através do Programa de Emergência e que, ao todo, contém 19 quilos assim distribuídos: 5 de arroz, 5 de fubá, 2 de farinha, 1 de açúcar, 4 pacotes de macarrão e 2 latas de óleo vegetal. A mulher poupa as iguarias recebidas, de tal forma que duram, em média, 15 dias, se complementadas com as compras feitas com o salário de R$ 80,00 (exceto no estado do Piauí, onde é de R$ 60,00), pago pelo governo, a título de emergência, às famílias atingidas pela seca. Apesar da má qualidade dos alimentos da cesta básica, conforme destacam praticamente todas as entrevistadas (o fubá é ruim, o feijão vinha duro (foi substituído pelo fubá) e a farinha não presta), a família se mantém num patamar mínimo de sobrevivência alimentar durante um mês. A situação torna-se mais crítica quando aquele salário sofre atrasos, o que ocorre com freqüência, prejudicando aquelas fragilizadas famílias, que ficam sem ter a quem recorrer para conseguir qualquer tipo de alimento. Os comerciantes da localidade não vendem fiado a esses trabalhadores, devido aos freqüentes atrasos nos pagamentos da Frente de Emergência, o que contribui para descontrolar ainda mais seu limitado orçamento familiar. Diante de tal realidade, a fome absoluta ameaça intermitentemente o cotidiano dos atingidos pela seca.

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