terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A dimensão social e política da seca

A seca é um fenômeno natural que tem registro no Nordeste desde a colonização da zona semi-árida da região, sendo de 1534 o primeiro relato desse desastre natural (Andrade, 1986). De acordo com Araújo (1999), ao se focalizar a dimensão natural das secas, não se consegue vislumbrar muito mais do que a histórica repetição de cenas de fome e sede. Embora tendo o caráter natural e acontecendo na mesma região, a seca ocorre em diferentes conjunturas sociais, econômicas e políticas que possuem aspectos particulares quanto à estiagem. Misturam-se a ela aspectos socioeconômicos e políticos que lhe tiram o caráter único de desastre natural. Para efeitos deste trabalho, a seca será considerada como fenômeno social que agrava a pobreza e afeta particularmente as condições de vida da população, que dificilmente tem acesso às políticas sociais.

A seca, como fenômeno social de dimensão secular, segundo Gaspari, citado por Araújo (1999), muda a própria história das estiagens. Em 1877, a catástrofe centrou o tema na consciência nacional; em 1915, o governo se envolve com as conseqüências do fenômeno; em 1958, a seca leva à fundação da SUDENE; em 1998, transpôs os saques da fome do sertanejo para a sala de jantar do Brasil.

Diversas políticas sociais têm sido implementadas no enfrentamento da seca, muitas das quais destinadas a corrigir distorções conjunturais geradas por modelos econômicos. As preocupações em corrigir distorção estrutural proporcionam algum quantum de equidade social e sustentabilidade ambiental, que só recentemente começaram a fazer parte da agenda governamental. Algumas medidas são implementadas sem resultado permanente, pois são geradas no jogo das articulações políticas em que se considera a sociedade como espaço que pertence aos outros. Assim, tais medidas são manuseadas e desviadas no caminho da prática, pois os horrores da seca fortificam interesses regionais.

Os efeitos da seca não atingem igualmente a população e o território do semi-árido, fato que favorece as desigualdades dos benefícios destinados ao socorro da população através de uma política unificada. Considerando que o Nordeste está dividido em três zonas de diferentes aspectos naturais e que possui infra-estrutura dominada pelas oligarquias agrárias, o assédio aos governantes, quando da instalação das políticas sociais dirigidas à região, é marcante. O momento da seca, para os produtores mais abastados, pode significar mais uma oportunidade para aumentar seu poderio e estender seus domínios com o auxílio das políticas sociais, a exemplo do crédito financiado a juros baixos, a ser pago no longo do prazo ou a fundo perdido (FUNDAJ, 1983). Na implementação das políticas, os mais vulneráveis são geralmente os trabalhadores sem terra e miniproprietários rurais. No estado de Pernambuco, por exemplo, aproximadamente 32% (Albuquerque, 1998) da população não conseguem atravessar os momentos críticos da estiagem sem ajuda externa. Os produtores potencialmente mais resistentes, formados por grandes proprietários ou pertencentes a famílias abastadas, enfrentam os efeitos da seca com menor esforço e sofrimento, principalmente devido à ajuda das políticas sociais.

No entanto, a seca, ao dar visibilidade às mazelas sociais da região, dá espaços à lógica da contradição, que possibilita a organização da população afetada para se mobilizar e cobrar dos governantes medidas de amparo. Nessa ocasião, homens e mulheres adotam práticas de luta, adequadas a cada conjuntura política. Assim, enquanto os proprietários rurais tomam atitudes que lhes proporcionam ganhos que superam suas perdas, os trabalhadores rurais, particularmente os sem terra, redefinem sua forma de ação ao trocarem o tradicional saque realizado em feiras públicas pelo ataque a transportadores de alimentos administrados pelo governo, além de promoverem ocupação do principal órgão de desenvolvimento da região, a SUDENE, para reivindicar uma política de apoio à população atingida pela seca. A mulher exerce, de modo peculiar, pressão mais direta sobre as estâncias estaduais e municipais que estão mais próximas.

A seca, por um lado, causa danos à população, mas também propicia benefício, como o da informação, especialmente através do rádio e a da televisão, que, divulgam e denunciam a situação e ação dos trabalhadores, além da profundidade da catástrofe. Também leva à tona o nível de organização política dos mais afetados, através dos sindicatos dos trabalhadores rurais e movimentos sociais que lhe dão visibilidade, a falta de infra-estrutura da região rural, a exemplo da carência de energia elétrica, a fragilidade do nível educacional da população e a sua convivência com problemas típicos de grandes cidades, como a insegurança, a prostituição, o consumo e o tráfico de drogas (Fischer e Melo, 1999).

Essas mazelas sociais, que aparecem em pequenas cidades interioranas, podem ser consideradas filhotes da globalização, que, além de invadir os mais longínquos recantos do Nordeste, tem contribuído para redefinir hábitos, costumes e tradições que parafraseando Hobsbawn (1997), foram secularmente inventadas.

A seca que atingiu o Nordeste do Brasil no período 1997-1999 se instala num contexto já fragilizado pelos efeitos da globalização, que se manifesta através do desemprego, da migração interna na região, da concorrência entre forças desiguais etc. Tais efeitos tendem a se agravar, pois, segundo Ianni (1995), esse vasto processo histórico-social, econômico, político e cultural continua a expandir-se. A globalização como aporte econômico, de um modo geral e, particularmente, no Nordeste, contribuiu para a desaceleração da indústria, do comércio e da agricultura. Tais fatores levam a aprofundar os efeitos nefastos da seca sobre a população atingida. Além disso, a competição desigual, própria da globalização, é duplicada com a situação de seca, pois as regiões afetadas pela catástrofe enfrentam a concorrência com outras localidades que se encontram em plena normalidade, fato que contribuiu para a transferência da renda das regiões mais pobres para as mais ricas. Assim, a seca se instala num cenário em que grande parte do pequeno produtor sem terra reside na periferia da cidade, não tem lugar certo de trabalho quando planta, e a prioridade do proprietário da terra é pela produção de alimento para a pecuária.

Com a seca, a pecuária torna-se mais vulnerável diante da globalização. Os produtores do sequeiro, em função da crise climática, enfrentam a concorrência de carne e leite em condições desfavoráveis.

Na avaliação de administradores governamentais locais entrevistados, a expectativa para a agricultura é a de que a recuperação seja lenta. "Os governantes terão de escolher entre subsidiar o campo ou construir a miséria na cidade".

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